Uma verdade meramente sensível: ensaio sobre a modéstia da crítica literária
Publicado: 19/05/2021 - 21:20
Última modificação: 20/05/2021 - 16:16
O acúmulo de textos é uma constante ao longo de vidas leitoras. Formamos nossas pilhas de leituras adiadas a partir das circunstâncias de nosso encontro com novos textos e do trajeto que percorremos até abandoná-los para exploração futura. Uma primeira aproximação ao tema se baseia nos acasos que reorganizam as pilhas de textos dos leitores, representados inicialmente, aqui, por narradores e personagens da ficção de Jorge Luis Borges. Junto a eles aparece Zenóbia, um dos cenários ficcionais n’As cidades invisíveis de Italo Calvino. A descrição dessa cidade pelo narrador de Calvino, Marco Polo, é capaz de oferecer um excelente modelo metafórico dos caminhos algo desordenados que percorre uma vida leitora. Daí em diante, dois livros darão lastro para um pensamento sobre o evento da leitura: Parque das ruínas, de Marília Garcia, e Manual do condutor de máquinas sombrias, de Rui Pires Cabral. A leitura é tratada como situação irrepetível e indizivelmente pessoal, mas já carregada de sentidos prefigurados. Uma vez que o ato de ler chegue ao fim, isto é, uma vez que o presente da leitura se esgote, ela tende à negociação coletiva da interpretação. Para aqueles dois livros, uma pergunta a se fazer é o quanto uma interpretação metapoética se apoia no nível de explicitude com que o tema e seus recursos comparecem ao texto: é o caso do Parque das ruínas. Mas nem por isso a intervenção leitora se torna incapaz de realizá-la de outra forma, enquanto formulação interpretativa refletida e particular: é um caso possível para o Manual de Rui Pires Cabral. A partir daí, com uma atenção maior depositada sobre a figura do leitor empírico, o olhar recai sobre os modos de relação entre a leitura literária e a escrita que se faz acerca da literatura. É possível que a redação de uma pesquisa voltada a ela, levada a cabo por alguém que é seu leitor habitual, se aproxime do texto literário em termos de recursos criativos? Se sim, de que modo fazê-lo? A literatura e os textos que tratam dela (críticos, jornalísticos, publicitários) mantêm “em jogo” os critérios que norteiam todo esse conjunto? Caso afirmativo, são capazes de dilatar também o alcance das interpretações feitas por seus leitores? O que significa considerar o leitor um coautor do texto literário que lê? Existe algo de arriscado, talvez até mesmo perigoso, na atividade de ler literatura? Que tipo de verdade, ou incitação a buscá-la os textos literários podem desdobrar a seus leitores? Ao testar respostas, a escrita crítica encontra a escrita ensaística, exercitando diversos modos de incorporação dos recursos literários e das variedades de comentário sobre os textos. Além dos autores já citados, o ensaio passa por diversos poetas e ficcionistas, como Vergílio Ferreira, Leonardo Fróes, Ruy Proença, Maria Gabriela Llansol, Alberto Pimenta, Hayan Charara, Ricardo Aleixo, Alejandra Pizarnik, Ricardo Piglia, John Keats e William Butler Yeats. Se encontra, além do mais, com ideias apresentadas por Joana Matos Frias, Roland Barthes, Jean-Luc Nancy, Jorge Larrosa, Silvina Rodrigues Lopes, Marcos Siscar, Eneida Maria de Souza, Leyla Perrone-Moisés, Guilherme Gontijo Flores, Alexandre Nodari, Johan Huizinga, Jacques Rancière, Paul Zumthor, Victor Chklóvski, Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser, Umberto Eco, Samuel Taylor Coleridge, Francis Ponge, dentre outros. Previsível desde o título, a ideia principal deste ensaio afirma que a leitura literária produz uma verdade sensível, portanto contingencial e não compartilhável em sua totalidade. Pensá-la tem como primeira consequência levantar a questão dos objetivos da crítica literária e do modo como apresenta seus textos ao público leitor.
Palavras-chave: Leitura; Vidas leitoras; Verdade sensível; Ensaio; Crítica literária.